Laudas Críticas

Saída de editor não esfria caso de pseudociência e favorecimento

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Mohamed Saladin El Naschie, editor-chefe da revista "Chaos, Solitons & Fractals"

A notícia de que o físico e engenheiro egípcio Mohamed Saladin El Naschie deixará seu cargo de editor-chefe da revista Chaos, Solitons & Fractals (CS&F) não conseguiu amenizar a crise que comentei ontem (segunda-feira, 01/12), em “Periódico é acusado de pseudociência e favorecimento”. Não está mais em questão, nem mesmo para os críticos mais moderados, se El Naschie publicou ou não 322 artigos de sua própria autoria no mesmo periódico por ele editado, nem se ele os usou para fazer grande parte das suas 3.050 citações. Enquanto a imprensa não toca no assunto, as atenções na blogosfera especializada se voltam cada vez mais para o grupo editorial Elsevier, sediado em Amsterdam, que publica a CS&F. E começam a ser dirigidas também para a seletíssima base de dados Science Citation Index, que credencia essa revista.

Destaquei ontem a atuação crítica nesse caso do físico-matemático John Baez, da Universidade da Califórnia em Riverside, por meio do blog comunitário de físicos e matemáticos The n-Category Café. Mas, como não prestei atenção aos comentários à sua postagem “The case of M. S. El Naschie”, faltou eu dizer que foram enviados e-mails para os superiores de Baez na UCR, alegando que suas críticas “ultrapassaram dos limites”, e que essas mensagens diziam ser de um consultor jurídico (legal advisor) do grupo editorial Elsevier, o que não foi confirmado.

Outra distração minha foi não considerar que a maioria dos internautas não tem livre acesso à reportagem “Self-publishing editor set to retire”, da Nature News. Nela, o físico teórico croata Zoran Škoda, radicado nos EUA na Universidade de Wisconsin, afirmou ter sido advertido por alguém — que seria outro legal advisor da Elsevier — de que suas críticas à CS&F seriam difamatórias e que ele poderia ser processado por isso. Parte do conteúdo dessa reportagem está transcrita em “El Naschie update and peer review” e há comentários sobre ela em “The case of M.S. El Naschie, continued”, de Baez.

Estigma indesejado

Uma forte evidência de que a saída do editor-chefe da CS&F não bastará para acabar com essa crise surgiu ontem foi a postagem “The soft underbelly of science” (algo como “O ponto fraco da ciência”), do blog The Scholarly Kitchen, mantido pela Society for Scholarly Publishing, dos Estados Unidos. Sem levar em conta as evidências de promoção de pseudociência, mas com várias ressalvas em prol do benefício da dúvida em favor de El Naschie, o texto de Philip Davis, doutorando em comunicação pela Universidade Cornell, chama a atenção para seguinte aspecto em relação às acusações ao editor-chefe da CS&F.

Não importa se os artigos dele foram de fato, submetidos ao peer-review [avaliação prévia pelos pares], como foi questionado por membros da comunidade de física matemática. Há uma percepcão de que El Naschie usou um atalho no processo, e isso, apenas, é uma preocupação válida sobre a integridade do periódico. [O negrito é do autor.]

Mais adiante, após explicar que as revistas científicas são comunidades que envolvem valores, e que por meio da aceitação de um artigo se dá uma transferência de prestígio da publicação para o seu autor, Davis afirma:

Ao prejudicar a reputação de um periódico, um editor enfraquece a disposição de futuros autores de oferecer seu manuscrito em função de prestígio. Esses autores terão satisfação oferecendo seus trabalhos a outras publicações; são milhares de revistas sedentas por manuscritos. Além disso, aqueles autores que já publicaram em um periódico duvidoso não conseguem automaticamente se dissociar dele. Eles ficam presos ao estigma que decorre de sua associação àquela comunidade.

Proposta de boicote

Acontece que a percepção destacada em negrito por Davis se refere a práticas que ocorreram durante dez anos, e isso faz com que surjam também críticas ao controle da qualidade por parte da Elsevier sobre suas revistas. Alguns desses questionamentos foram bem mais diretos, entre eles os que foram feitos pelo jornalista freelance britânico Richard Poynder, que mantém o blog Open and Shut. Ele afirma, em sua postagem de 29/11, ter encaminhado questões sobre esses aspectos à Elsevier e que a editora teria lhe dado respostas evasivas, questinando seu interesse pelo assunto.

Enquanto não surge uma resposta pública a essas questões, surgem até propostas de boicote às assinaturas aos periódicos, como a que foi feita pelo matemático Ben Webster, do MIT (Instituto de Tecnologia de Massachusetts). Fora da Europa, a assinatura anual da CS&F custa U$ 4.520 para bibliotecas de instituições de pesquisa, mas esse valor diminui incluída em um pacote com outraspublicações.Em seu texto “L’affaire El Naschie” (30/11), publicado no Secret Blogging Seminar, um blog produzido por oito pesquisadores, a maioria deles da Universidade da Califórnia em Berkeley, Webster atacou também a base de dados Science Citation Index, que registra as citações de artigos publicados nos periódicos por ela credenciados.

Os índices do SCI são consagrados como critérios de avaliação de impacto, na comunidade científica internacional, não só de revistas e papers, mas também de autores e, por extensão, de suas instituições. Foi em vista disso e de toda essa crise que eu afirmei na postagem de ontem que ela pode ser interpretada como uma contrapartida involuntária do escândalo provocado propositalmente em 1996 pelo físico Alan Sokal, que extrapolou o escopo da crítica feita por ele e até hoje é usado indevidamente como argumento para menosprezar a credibilidade das humanidades. Vale lembrar que Baez considerou um dos artigos de El Naschie “bem menos sofisticado que os dos irmãos Bogdanoff”, comparado por ele em 2006 como um reverso do affaire Sokal.*

Em meio à elevação da temperatura dessa crise, o texto de Philip Davis se destaca como uma saudável provocação para usá-la como pontode partida para refletir com mais profundidade sobre as relações do mundo da ciência, principalmente aquelas que são ofuscadas pela engrenagem e pela banalização do dia-a-dia. Ele chama a atenção para aspectos sociológicos com claras implicações práticas. Ao comentar como o sistema da ciência reaje ao ser testado e cutucado e como as lideranças científicas se comportam sob pressão, Davis destaca também que crises como o caso El Naschie revelam normas não escritas que dirigem a conduta da instituição ciência.

* O texto sublinhado foi acrescentado às 23h59.

* * * * * * *

Outras postagens sobre o mesmo assunto:

“Canadense revela conexão chinesa no escândalo de revista científica”, 09/12/2008

“Periódico é acusado de pseudociência e favorecimento”, 01/12/2008

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Written by Mauricio Tuffani

terça-feira, 02/12/2008 às 7:24

4 Respostas

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  1. Oi Maurício. Mais uma vez, parabéns pelo blog.
    Muito interessante este episódio com a Elsevier e os físicos.
    Muito resumidamente (e sei que não contribuirei muito com este comentário), acho que a comparação deste episódio com o do Sokal não é muito apropriado. Pelo que lembro, a intenção do Sokal foi ridicularizar a desvirtuação proposital de conceitos da hard science, (utilizados de forma pra lá de absurda), para justificar algumas teses sociológicas.
    Neste caso, o episódio parece mostrar que as mentiras têm pernas cada vez mais curtas. Mais agora com os blogs. De certa forma, o episódio não deveria ser visto como uma forma de critica à ciência. Enquanto os cientistas continuem sentindo um enorme prazer (e obrigação de) em testar/detonar as teses dos colegas/rivais, acho que o sistema acaba se depurando. Para denunciar a mentira, agora já não é necessário que o artigo com a denúncia seja aceito (já que pode não ser aceito pelos mais diversos motivos, inclusive os econômicos). Para desmentir o Jacques Benveniste e aquelas bobagens homeopáticas publicadas na Nature (!) demorou um tempão. Agora o coreano que “clonou” não sei quantos, os físicos que descobriram a nova partícula, e este novo numerólogo (? não li nada dele) acabam caindo rápido rápido.
    Fraqueza ou fortaleza do sistema?

    roelf

    terça-feira, 02/12/2008 at 11:33

  2. Caro Roelf,

    Obrigado pela visita e por seu questionamento, que permite me alongar nesse assunto de modo que não seria adequado ao texto acima.

    Repare, por favor que eu não afirmei que o episódio deve ser visto como uma “crítica à ciência” nem que ele demonstra a “fraqueza” dela. Isso serve também para o que Sokal fez, que não foi uma crítica às humanidades, segundo as ponderações do livro escrito por ele e por Jean Bricmont, Imposturas Intelectuais.

    O objetivo inicial de Sokal foi mostrar que um texto nonsense com conceitos das hard sciences pode ser aceito sem qualquer questionamento por uma conceituada revista de humanidades. Seu alvo era alguns pensadores que “imaginam, talvez, que podem explorar o prestígio das ciências naturais de modo a transmitir aos seus próprios discursos uma aparência de rigor. E parecem confiar que ninguém irá revelar o emprego incorreto dos conceitos científicos”. E creio que nisso ele teve pleno sucesso. Sua crítica ao relativismo é outra coisa, mas pegou carona no mesmo Imposturas Intelectuais.

    O que eu disse foi que esse episódio pode ser interpretado como uma contrapartida do escândalo provocado por ele, que foi algo maior do que aquele que ele fez e pretendia fazer. O que eu chamei de efeito Sokal foi algo muito maior. Tornou-se uma idéia de que ele teria conseguido refutar com sua farsa-armadilha “o relativismo”, seja ele qual for. Basta usar um argumento relativista qualquer que logo aparece alguém com o bordão “Sokal nele!”, como se sua genial performance tivesse alguma conseqüência teórica ou pelo menos lógica. E já vi essa besteira de forma simplória até mesmo em teses de doutorado de humanidades, dessa vez por outros que lidam com assuntos de hard sciences que não entendem, mas que estão do lado dele.

    Nesse sentido, é razoável aceitar que o caso El naschie seja usado, também indevidamente, para criticar as hard sciences. Não vou eu dizer que a ciência é uma farsa e coisas do tipo, mas:

    1) há uma revista editada pela Elsevier e indexada no SCI;

    2) essa revista publica textos com títulos assustadores para especialistas da mesma área;

    3) esses artigos são de autoria do próprio editor-chefe da revista, que além de despejar nas páginas dela montes de artigos de sua autoria, consegue também emplacar em outros periódicos papers como “The cosmic Da Vinci code for the big bang — a mathematical toy model” (International Journal of Nonlinear Sciences and Numerical Simulation); e

    4) esses artigos ficaram circulando anos incólumes por aí, até o dia em que um Škoda da vida decide pôr a boca no trombone. (Mas repare que não houve tempo para ninguém fora da Social Text questionar a peça de Sokal, pois ele se autodenunciou imediatamente após a publicação.)

    Sokal emplacou um único artigo notoriamente picareta em uma revista, e não deu tempo para mais ninguém descobrir o que ele aprontou. A conseqüência — não nos cânones da ciência, mas no plano das relações não formais, como disse Philip Davis — foi o descrédito das humanidades em geral. El Naschie escreve há tempos artigos notoriamente pseudocientíficos e a revista onde ele fez isso custou muito para ser criticada. É de se esperar uma contrapartida, por mais injusta que seja, nesse mesmo plano emq que se diz tudo mas não se compromete com nada: o efeito El Naschie.

    Sobre isso, veja, por favor, a opinião de Baez no acréscimo que fiz ao penúltimo parágrafo do texto acima.

    Abraço,

    Maurício Tuffani

    Mauricio Tuffani

    terça-feira, 02/12/2008 at 22:01

  3. Completamente esclarecido. Eu tinha entendido errado tua alusão ao Sokal (e longe eu de defendê-lo).
    O título desse artigo (“The cosmic Da Vinci code for the big bang — a mathematical toy model”) é quase tão engraçado quanto o artigo do Sokal.
    Mas eu ainda insisto, com uma mistura de ingenuidade e otimismo, que quando isto acontece (a descoberta destes absurdos) é quando a boa ciência prevalece e a vaidade humana é desmascarada. E ao que parece, descobrir estas picaretagens está ficando menos difícil com o surgimento de blogs, programas que detectam plágios, etc. Sem dúvidas, a forma de divulgar resultados científicos na forma atual (peer reviews + revistas científicas, etc.), está bem longe de ser perfeita, mas até agora parece ser a melhor que temos… até que surja outra! (OK, isto é quase do Sagan).
    Abraço e Até Lindoia

    roelf

    terça-feira, 02/12/2008 at 23:47

  4. […] áreas de física e matemática. Depois da mais recente manifestação deste blog sobre esse caso (”Saída de editor não esfria caso de pseudociência e favorecimento”, 02/12/2008), alguns pesquisadores começaram a fuçar os registros de um dos parceiros de El […]


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