Laudas Críticas

Archive for junho 2010

O relativismo, o dogma e a banalização

with 51 comments

“As ideias muito possuídas não são mais
ideias, eu nada penso quando as falo.”

(Maurice Merleau-Ponty, O Visível e o Invisível )*

(Este texto, de 17 de junho, é meu último post na inútil tentativa de discussão com Antonio Cicero. Encerrei o assunto com meu comentário de 30 de junho, que está ao final desta página.)

Apesar de parecer para o senso comum um mero exercício de diletantismo, a discussão que iniciei em 26 de maio no jornal Folha de S. Paulo a partir de uma crítica minha ao colunista Antonio Cicero tem implicações diretas sobre temas de fundo da atualidade. Infelizmente, apesar de ter optado por responder ao meu artigo mais recente (“Uma ameaça maior que o dogma”) em seu blog Acontecimentos, ele deixou de aproveitar a vantagem de espaço do formato online em relação ao impresso, limitando suas considerações ao plano do antagonismo entre os argumentos dele e os meus. E, o que é pior, deixando completamente de lado minha provocação para levar a discussão para um plano mais elevado.

A provocação a que me refiro pode ser resumida na afirmação, nesse meu artigo anterior, de que a banalização é uma ameaça maior que o dogma, e pode fazer da própria defesa da liberdade de pensamento um clichê vazio e inócuo. Minha menção à liberdade de pensamento se deveu ao fato de ela ter sido evocada pelo próprio colunista em sua réplica “Heidegger, Descartes e a razão” à minha primeira crítica “O tabu em torno da razão”.

 

O contexto da discussão

Um desses temas de fundo que afirmo serem diretamente relacionados à discussão em pauta é o chamado multiculturalismo. Sob uma perspectiva relativista, pode-se chegar a concluir, por exemplo, que a ausência dos direitos de cidadania em determinadas sociedades deve ser tolerada e compreendida como uma questão interna delas. Antonio Cicero nega a validade dessa perspectiva, e nisso estou, em princípio, de acordo com ele, que exemplificou esse tema com o caso particular da clitoridectomia imposta por preceitos religiosos, considerada em certos meios intelectuais como uma prática que deve ser tolerada por ser cultural (“A sedução relativa” in: Adauto Novaes [organizador], O Silêncio dos Intelectuais. São Paulo: Companhia das Letras, 2006, p. 195).

Algumas interpretações da obra do filósofo alemão Martin Heidegger (1889-1976) apontam, grosso modo, o pensamento dele como fundamento do relativismo, alegando que ele nega a validade do próprio conceito de razão. Interpretações como essa são feitas tanto por teóricos que concordam com o pensamento heideggeriano como por outros que o contestam.

Discordo da ideia, que não é compartilhada só por Antonio Cicero, de que esse filósofo tenha fundamentado o relativismo e, portanto, a tolerância levada às suas últimas consequências no plano do multiculturalismo. Entendo que essa interpretação é fruto do cenário de banalização de ideias que passou a ser intensificada nas últimas décadas e que afeta os meios culturais, inclusive os acadêmicos.

Apesar de eu concordar com o colunista no que tange ao “silêncio dos intelectuais” sobre temas essenciais — e de discordar de Heidegger em alguns pontos —, entendo que há motivos relevantes para questionar os pressupostos desse autor brasileiro sobre o filósofo alemão. Por exemplo, entendo que o pensamento heideggeriano se contrapõe à razão, às ciências e às técnicas, não para negá-las ou desqualificá-las, mas apenas na medida em que elas se sobrepõem até mesmo ao espaço de uma reflexão que nos distancie dos objetos técnicos, aos quais estamos cada vez mais apegados e submetidos.

Em outras palavras, apesar dos seus desastres de percurso, das críticas procedentes que tem recebido e deverá ainda receber, bem como das equivocadas acusações de paternidade filosófica, entendo o pensamento heideggeriano como um esforço para preservar a reflexão das consequências da incapacidade de as ciências e as técnicas avaliarem o sentido das ações humanas. As implicações dessa incapacidade tiveram uma de suas melhores expressões nas seguintes palavras de Hannah Arendt.

O problema das modernas teorias do behaviorismo não é que elas estejam erradas, mas sim que podem vir a tornar-se verdadeiras, que realmente constituam as melhores conceituações possíveis de certas tendências óbvias da sociedade moderna. É perfeitamente concebível que a era moderna — que teve início com um surto tão promissor e tão sem precedentes de atividade humana — venha a terminar na passividade mais mortal e estéril que a história jamais conheceu.
(Hannah Arendt, A Condição Humana. Tradução de Roberto Raposo. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2004, pp. 335-336.)

Assim como tem acontecido com as obras de outros pensadores, a banalização do pensamento de Heidegger tem provocado não só a distorção de suas conclusões, mas a ocultação de suas interrogações, que é muito mais prejudicial para o pensamento crítico. Antonio Cicero tem razão ao afirmar, com outras palavras, que grande parte do irracionalismo presente na perspectiva relativista de muitos intelectuais está relacionada ao pensamento de Heidegger. Mas entendo que ele se equivoca ao não se dar conta de que isso é fruto da banalização do pensamento desse filósofo.

Em outras palavras, a crítica heideggeriana ao pensamento de Descartes não tem como consequência a validade de qualquer pensamento divergente do cartesianismo. A discussão filosófica do relativismo como visão de mundo, com suas implicações atuais e futuras, passa pela depuração desse equívoco. Mais que uma contraposição à resposta de Antonio Cicero a meu artigo “Uma ameaça maior que o dogma”, o presente artigo pretende oferecer elementos para ao menos manter aberta a questão sobre a relação entre a obra de um dos maiores pensadores do século 20 e o relativismo.

 

A sequência do debate

A cronologia de minha discussão com Antonio Cicero é a seguinte.

1. Antonio Cicero publicou em 15 de maio, em sua coluna quinzenal no caderno “Ilustrada”, da Folha, o artigo “Irracionalismo”, e o reproduziu em seu blog. (Os links aplicados aos títulos dos artigos dele e meus neste post são sempre os dos respectivos blogs, e não do jornal, cujo acesso é limitado a assinantes).

2. Critiquei esse artigo do colunista no mesmo jornal, mas na seção “Tendências/Debates”, que fica na terceira página do primeiro caderno, com o artigo “O tabu em torno da razão”.

3. Antonio Cicero replicou em sua coluna na “Ilustrada” no dia 29 de maio com o artigo “Heidegger, Descartes e a razão”.

4. Minha tréplica “Uma ameaça maior que o dogma” foi publicada na seção “Tendências/Debates” no dia 8 de junho.

5. Na edição de 12 de junho da Folha, Antonio Cicero informa no pé de sua coluna que responde à minha tréplica por meio de seu blog, o que o faz com o post “Resposta a Maurício Tuffani”.

Apesar da elogiável disposição da Folha de S. Paulo não só para uma discussão filosófica — que, infelizmente, é incomum na grande imprensa brasileira —, mas também para uma contestação a um de seus colunistas, estou de acordo com a opção de Antonio Cicero por dar continuidade ao debate na internet. Isso evita a limitação de espaço do do formato impresso, que no meu caso era mais restrita: os cerca de 4.400 caracteres da coluna dele são aproximadamente 45% maiores que os dos meus artigos, que têm por volta de 3.000.

É certo que essa opção deixará este debate mais exposto à falação, aos ruídos e à confusão que tomaram conta da rede mundial de computadores. Acontece até mesmo entre leitores de boa formação cultural o entendimento de um confronto de ideias como um pugilato filosófico, um embate que tende a ser percebido em seus atributos externos, mais superficiais, e não no plano de seus pressupostos e de suas condições de possibilidade. Mas, na medida em que eu e ele usamos a política de moderação dos comentários encaminhados aos nossos blogs, certamente temos condições de fazer um uso proveitoso desse recurso tecnológico.

Nos posts dos dois artigos do colunista e no do meu primeiro, respondi a comentários de internautas feitos em meu blog e no dele. Como ele, por sua vez, só se manifestou em seus próprios posts, passei também a fazê-lo somente em meu blog, e assim continuarei e proceder. Eventuais correções a este texto serão explicitadas por meio de supressões em cinza tachado e de acréscimos em verde sublinhado, com o registro da data e horário da alteração [domingo, 20 de junho, 10h00].

 

Negação da desqualificação

Para contestar ponto a ponto e dentro de seu próprio contexto a resposta mais recente de Antonio Cicero, eu a reproduzo a seguir em itálico e vermelho, com a margem recuada, e nela intercalo meus comentários na sequência dos trechos copiados. O texto foi copiado de seu blog na data de sua publicação (12 de junho). Na medida em que ele foi reproduzido em diversos outros domínios na internet, e de essa ser uma prática comum com os textos de seu blog, entendo não haver restrição a esse tipo de reprodução, principalmente em vista do objetivo de crítica.

Resposta a Maurício Tuffani

Antonio Cicero

Lembro aos leitores que, em 15/05, escrevi um artigo, na Folha de São Paulo, intitulado “Irracionalismo” em que, entre outras coisas, especulo que, paradoxalmente, uma das razões para a popularidade de Heidegger entre os intelectuais franceses pós-modernistas tem a ver com o seu feroz anticartesianismo.

De fato, foi isso o que o colunista disse no quarto parágrafo do citado artigo. Mas não foi somente a isso que eu me contrapus. Em “O tabu em torno da razão”, logo na abertura, eu deixei muito explícito que meu motivo era contestar dois pontos desse primeiro texto dele, e o fiz afirmando que o colunista atribuíra “indevidamente a Martin Heidegger um ‘feroz anticartesianismo’ e também a ‘desqualificação’ da tradição filosófica e da razão”.

A partir disso, Maurício Tuffani escreveu, no mesmo jormal, um artigo afirmando, sem nenhum fundamento, que Heidegger não era sequer anticartesiano.

O colunista pode não concordar com o que apresentei como fundamento, mas ele não diz a verdade ao afirmar que não apresentei nenhum. Devido à minha restrição de espaço, eu apontei nessa minha crítica a ele somente uma consideração de Heidegger sobre o seu próprio pensamento, expressa em Sobre o Humanismo:

No âmbito do pensamento essencial, toda oposição é insensata. [Alles Wiederlegen im Felde des wesentliches Denkens ist töricht.]
(Martin Heidegger, Über den Humanismus. 10ª edição. Frankfurt: Vittorio Klostermann, 2000, p. 28.)

Vale a pena ressaltar que nessa resposta Antonio Cicero pelo menos não insiste mais em defender a aplicação do adjetivo “feroz” ao substantivo “anticartesianismo”.

Em resposta, mostrei – creio que de modo claro, apesar de sucinto – que o anticartesianismo não é episódico, mas estrutural ao pensamento de Heidegger, de modo que este ficaria sem dúvida horrorizado com essa malograda tentativa de “salvá-lo” do anticartesianismo. (…)

Comentarei mais adiante essa afirmação, cuja implicação é a de que Heidegger aceitaria ser considerado anticartesiano. Continuemos com o mesmo parágrafo.

(…) Ademais, chamei atenção para o fato de que praticamente todos os grandes comentadores da obra de Heidegger o consideram anticartesiano. Caberia, portanto, a meu adversário refutar meus argumentos e citar vários e importantes comentadores de Heidegger que pensam o contrário (não valeriam textos em que Heidegger parece RESPEITAR Descartes, pois, como observo no mesmo artigo, “naturalmente, reconhecer alguém como seu inimigo fundamental é antes respeitá-lo do que desprezá-lo”).

O que segundo ele “caberia” eu ter feito jamais caberia em três mil caracteres, neles incluídos os espaços entre palavras. Em uma crítica devidamente fundamentada, caberia a mim, antes de qualquer coisa, apresentar também interpretações contrárias à minha. Agora, aproveitando que aqui há espaço suficiente, e tendo em vista que nem ele mesmo fez isso, eu o faço. Cito, por exemplo, o norte-americano Richard Rorty (1931-2007), que relacionou Heidegger entre os três filósofos mais importantes do século 20, ao lado de Wittgenstein e Dewey em seu livro Philosophy and the Mirror of the Nature (Princeton: Princeton University Press, 1980, p. 6). Na página seguinte àquela em que faz essa distinção ao alemão, o pensador norte-americano interpreta o ideário elaborado a partir das obras dos três filósofos citados como uma “revolução anticartesiana e antikantiana”.

Mas se o próprio Rorty, que tanto elogiou Heidegger, o apontou como um dos protagonistas de uma tal revolução anticartesiana, por que me dei ao trabalho de atormentar os leitores da Folha, para contestar a caracterização de anticartesianismo feita por Antonio Cicero? E por que o faço novamente neste espaço virtual?

Não foi por haver em outros textos de Heidegger ressalvas de teor idêntico ao daquela que apontei acima. Antonio Cicero, aliás, afirma que essas ressalvas não bastam para contestar sua afirmação de que o pensador alemão é anticartesiano, uma vez que há autores que assim o consideram. E acrescenta que, para eu refutá-lo, eu deveria ter apontado estudiosos de opinião divergente. No entanto, essa exigência é estranha, pois mesmo que eu tivesse feito isso, não teria conseguido refutar a concepção dele. Seria apenas uma mera contraposição entre teses diferentes, seguida do inevitável “e daí?”.

Na verdade, não me incomodei com o uso da expressão “feroz anticartesianismo” por Antonio Cicero já há algum tempo, quando a encontrei em seu artigo “A sedução relativa” (p. 202). Mais que isso, não me incomodei com esse uso e com outros pontos desse seu ensaio até por eu concordar plenamente com a tese dele de que o relativismo é um dos fatores que levam ao injustificável silêncio dos intelectuais diante de acontecimentos inaceitáveis.

O que desta vez me fez contestá-lo foi a conjunção de três fatores. O primeiro deles é que eu realmente penso que o uso do prefixo “anti” em relação à obra de qualquer pensador tem implicações que extrapolam o que se pretendia caracterizar ao usá-lo. Por exemplo, o termo “antiliberal” pode ser aplicado a comunistas, fascistas e até a anarquistas, mas não iguala estas três categorias nem mesmo naquilo em que cada uma delas se opõe à dos liberais.

O segundo fator foi a associação do termo “anticartesianismo” com outro, “irracionalismo”, usado como título desse citado primeiro artigo de Antonio Cicero. E, sem querer usar como prova do que afirmo, mas para refutar a caracterização indevida do colunista de que estou só em minha interpretação de Heidegger, segue uma consideração de Ernildo Stein.

Esta aula inaugural pública, que teve lugar no dia 24 de julho de 1929, trazia o título “Que é metafísica?” Publicado no mesmo ano, o texto integral da preleção obteve profunda repercussão. Provocou também muitos malentendidos. Parecia vir reforçar suspeitas despertadas já por “Ser e Tempo”. Heidegger era o promotor do niilismo, da filosofia do sentimento da angústia e da covardia, do irracionalismo que combatia a validez da lógica. Em resposta às objeções que se multiplicavam o filósofo acrescentou à quarta edição de 1943 um posfácio que respondia às objeções e elucidava aspectos da preleção que suscitavam dúvidas e mal-entendidos. Em 1949 o autor publicou, com a quinta edição do texto, uma introdução com título “O Retorno ao Fundamento da Metafísica”.
(“Nota do tradutor” in: Martin Heidegger, Que É Metafísica? Tradução, introdução e notas de Ernildo Stein; revisão de José Geraldo Nogueira Moutinho. São Paulo: Livraria Duas Cidades, 1969, p. 9.)

Porém, apesar dessa ponderação, faz sentido o uso, uma vez que foi tomado em seus respectivos contextos, que Rorty e pensadores como Peirce, Ricoeur e outros fizeran do prefixo “anti” em relação ao cartesianismo. Mas esse não é o caso do artigo de Antonio Cicero ao qual eu fiz objeção, e isso leva ao terceiro fator da motivação de meu primeiro artigo, no qual, como lembrei acima, a menção ao anticartesianismo foi acompanhada da afirmação da “desqualificação” da tradição filosófica e da razão. Retomarei este ponto mais adiante. Voltemos ao novo texto do colunista.

Em vez disso, Tuffani escreveu um artigo intitulado “Uma ameaça maior que o dogma”. E qual seria a ameaça maior que o dogma? Segundo ele, trata-se da banalização da filosofia. Já isso está errado, é claro. O dogma é pior do que a banalização, pois, além de ser banalizado, é também esclerosado, intolerante e surdo a críticas.

Guardo esse assunto para abordá-lo mais adiante neste texto, no tópico final, “A banalização e o dogma”.

Mas onde está a banalização da filosofia? “Está”, segundo Tuffani, “no apelo exagerado aos ‘ismos’ – o humanismo, o niilismo e outros – e em chavões manipuláveis ao gosto de cada intérprete”. É disso que ele me acusa. Há dois problemas nessa acusação. O primeiro é que ele não cita nenhum exemplo concreto do meu suposto afã banalizador; (…)

Eu não me referi ao mero uso dos “ismos”, mas, ao apelo exagerado a eles, e isso é o que afirmam minhas palavras que próprio o colunista transcreveu. Vamos adiante.

(…) o segundo é que ele se esquece de que o próprio Heidegger, o filósofo que ele pretensamente que[r] salvar da minha banalização, escreveu uma obra chamada “Sobre o HUMANISMO” e outra chamada “O NIILISMO europeu”…

Antonio Cicero cometeu um erro de grandes proporções ao citar justamente a obra Sobre o Humanismo, de Heidegger, para “provar” que este não se preocupava com o uso dos nomes obtidos a partir do sufixo “ismo”. Vejamos o que o próprio pensador alemão disse nesse texto, que foi escrito em resposta a perguntas do filósofo francês Jean Beaufret.

Você pergunta: Comment redonner un sens au mot Humanisme? [Como voltar a dar sentido à palavra “Humanismo”?] Essa pergunta nasce do propósito de conservar a palavra “humanismo”. Eu me pergunto se isso é necessário. Ou será que ainda não basta a evidência do desastre que causam expressões desse tipo? Não há dúvida que há tempo se desconfia dos “-ismos”. Mas o mercado da opinião pública sempre quer novos “ismos”. E sempre há disposição para atender a essa demanda. [Sie fragen: Comment redonner un sens au mot “Humanisme”? Diese Frage kommt aus der Absicht, das Wort »Humanismus« festzuhalten. Ich frage mich, ob das nötig ist. Oder ist das Unheil, das alle Titel dieser Art anrichten, noch nicht offenkundig genug? Man mißtraut zwar schon lange den »-ismen«. Aber der Markt des öffentlichen Meinens verlangt stets neue. Man ist immer wieder bereit, diesen Bedarf zu decken.]
(Über den Humanismus, p. 7)

Essa obra de Heidegger é muito conhecida, seu texto é muito curto, esse trecho consta logo na abertura e Antonio Cicero a cita em seu livro O Mundo desde o Fim e também em seu ensaio “A sedução relativa”, de 2006. Espero que Antonio Cicero perceba que estou renunciando completamente à oportunidade de tecer considerações das mais desfavoráveis sobre sua interpretação acerca do título dessa obra.

Eu não disse as palavras acima para carcterizar um favor, nem para parecer um “bom sujeito”, “um cara de alto nível” ou coisa que o valha. Não só porque não estou aqui para tratar meus leitores como platéia de um circo romano, mas também porque seremos ambos derrotados, de antemão, se nos restringirmos ao nível do mero confronto entre nós dois, renunciando ao cuidadoso e paciente confronto de nossos pressupostos mais básicos em sua relação essencial com o tema mais amplo do relativismo.

Deixando para trás esse lapso, o que importa aqui sobre esse trecho de Heidegger, é que a inevitável extrapolação decorrente do uso do prefixo “anti”, à qual eu acima me referi, atinge proporções muito maiores quando envolve os “ismos”.

Ademais, se considerarmos essa afirmação de Heidegger com sua outra dele Sobre o Humanismo, transcrita mais acima, em que ele considera insensata toda oposição no plano do pensamento essencial, faz pleno sentido concluir que esse filósofo alemão — que, aliás, rejeitou para seu pensamento o rótulo “existencialismo” — no mínimo não reclamaria de minha objeção a “anticartesianismo”.

Ou será que, para Tuffani, estou banalizando Heidegger ao chamá-lo de “anticartesiano”? Creio que se eu tivesse escrito um artigo para provar que Heidegger era “anticartesiano”, isso seria, para os filósofos – embora não para os leigos – banal, uma vez que uma verdade muito repetida é banal. (…)

Por serem expressas em um texto de filosofia, as palavras após “anticartesiano” nessa transcrição causam estranhamento, pois se mostram prestes a negar o que Aristóteles, em uma consagrada passagem da Metafísica (Livro Alfa, II, 982b12-17), apontou como origem do filosofar: a admiração (thaumázein) diante das dificuldades ou perplexidades mais simples (tá prókheira tôn apóron)**. O adjetivo prókheiros também se traduz como fácil, comum, vulgar, banal.*** Vale lembrar que o pensador paulista Paulo Ghiraldelli Jr., define a filosofia justamente como a desbanalização do banal.

(…) Contudo, o tema do meu primeiro artigo não foi esse. Só toquei nesse assunto porque minha intenção era mostrar a curiosa relação entre o anticartesianismo de Heidegger e sua popularidade entre intelectuais franceses; e, no segundo artigo, só falei do anticartesianismo exatamente porque Tuffani questionara – e, para ser sincero, penso que ele simplesmente ignorava – o fato de que Heidegger era anticartesiano.

Com muita sinceridade, eu afirmo que, se não fosse estranho deixar de lado uma forte adjetivação, eu poderia ter escrito meu primeiro artigo sem ter mencionado o anticartesianismo. Já expliquei acima que, apesar de eu discordar do uso desse termo, não o considero banalizador ou prejudicial ao entendimento desde que devidamente contextualizado, como o fazem vários comentadores, independentemente de serem favoráveis ou contrários ao pensamento de Heidegger. Mas essa contextualização não acontece no artigo “Irracionalismo”. Nesse texto, em que 10 de seus 14 parágrafos se referem a Heidegger, Antonio Cicero teceu seus argumentos sob a perspectiva de imputa ao filósofo alemão a “desqualificação” da razão. E esse foi o ponto essencial de minha objeção a ele.

No mais, como digo que Heidegger tentou relativizar a razão, Tuffani afirma que não notei que ele “contestara essa rotulação” (sic) no parágrafo 6 de “Ser e tempo”. (…)

Vamos por os pingos nos is. Contrariamente a toda a tradição que sempre mostrou as concepções cartesianas como sendo fundamentadas somente pelo próprio pensamento de Descartes, isto é, como sendo o verdadeiro fundamento autônomo da filosofia moderna, Heidegger apontou em Ser e Tempo (§ 6, § 18, e § 19) que essas noções são derivadas da escolástica medieval. Na medida em que a análise heideggeriana aponta essa dependência, eu me contrapus à afirmação de Antonio Cicero de que o pensamento desse filósofo alemão é uma “desqualificação” da razão. Desse modo, após ressaltar a conclusão de Heidegger de que as concepções cartesianas são derivadas do pensamento medieval, afirmei em meu primeiro artigo:

Em outras palavras, Heidegger problematiza as próprias noções de verdade e de razão. Ou seja, ele as recusa como absolutas. Mas isso — que o colunista não aceita — não é desqualificar a razão nem a ciência, a técnica e a modernidade.
(Maurício Tuffani, “O tabu em torno da razão”, Folha de S. Paulo, 26 de maio)

A réplica dele em sua coluna na Folha desconsiderou a análise heideggeriana da proveniência das concepções cartesianas como argumento de minha contraposição à ideia de desqualificação. E levou o assunto para o âmbito de um de seu grandes focos, que é o relativismo. É só conferir:

Tentando rebater-me, o sr. Tuffani diz que “Heidegger problematiza as próprias noções de verdade e de razão. Ou seja, ele as recusa como absolutas”. Ora, o que é recusar uma coisa como absoluta senão relativizá-la?.
(Antonio Cicero, “Heidegger, Descartes e a razão”, Folha de S. Paulo, 29 de maio)

Prisioneira da oposição gramatical entre antônimos, essa pergunta pressupõe uma inferência que incorre em uma enganosa aplicação do tertium non datur, o princípio lógico do terceiro excluído, pois o foco na relativização obriga a enquadrar todo tipo de negação de absolutos como uma atitude relativizadora no sentido do relativismo como visão de mundo. Para evidenciar essa desconsideração do colunista em sua réplica, precisei explicar novamente em meu segundo artigo que

Heidegger questionou as noções básicas do pensamento de Descartes, tradicionalmente concebidas como absolutas, e concluiu que elas são filhas da escolástica medieval. Essa investigação da “certidão de nascimento” do cartesianismo não é imune a críticas. Mas Antonio Cicero simplesmente chamou-a de “relativização”, sem notar que, há 73 anos, Ser e Tempo já previra e contestara essa rotulação (§ 6).
(Maurício Tuffani, “Uma ameaça maior que o dogma”, Folha de S. Paulo, 8 de junho)

Em outras palavras, Heidegger fez uma análise mostrando essa dependência cartesiana do passado escolástico, e Antonio Cicero simplesmente a chamou de relativização, sem criticá-la ainda que de passagem no jornal, ou pelo menos dizer se ele a criticara antes ou se alguém já o teria feito. Como eu já havia lido seu artigo “A sedução relativa”, de 2006, lembrava que esse outro texto também não apresentara uma crítica dessa análise do pensador alemão. E, eu, acreditando no rigor expositivo do colunista nesse ensaio de 2006, pressupus e afirmei que ele não notara que Heidegger previra e contestara a ideia de que essa busca da “certidão de nascimento” filosófico seria uma simples relativização do pensamento de Descartes. Com isso, Antonio Cicero me contestou:

(…) Engano dele: já em “O mundo desde o fim”, de 1995 (p.96-7 da edição brasileira ou p.89 da edição portuguesa), eu ironizava a pretensão de Heidegger no § 6, dizendo:

“Negando que tenha a pretensão de efetuar uma “má relativização” (schlechte Relativierung) de pontos de vista ontológicos, Heidegger explica que tenciona levar a cabo uma “comprovação da procedência dos conceitos ontológicos fundamentais como exposição investigadora das suas ‘certidões de nascimento'”, tendo em vista “delimitar [a tradição ontológica] em suas possibilidades positivas”; e complementa: “e isso sempre quer dizer em seus limites”. Em suma, ele pretende realizar uma boa relativização dos conceitos ontológicos — para nós, noético-ontológicos – fundamentais”.

Salta aos olhos o equívoco de Antonio Cicero nessa negação de que Heidegger negou que teve “a pretensão de efetuar uma ‘má relativização’ (schlechte Relativierung)”. O que se deduz logicamente dessa improcedente dupla negação é que Heidegger pretendia fazer uma má relativização. Isso não está escrito em Ser e Tempo e, se o tivesse sido, o filósofo alemão teria cometido um erro. O que houve foi, das duas, uma: ou uma expressão confusa do colunista, ou uma interpretação errônea sua de um trecho do § 6 de Ser e Tempo, reproduzido a seguir e que eu mesmo havia citado em meu artigo de 26 de maio.

Esta comprovação da filiação dos conceitos ontológicos fundamentais por meio de uma explanação investigadora de suas “certidões de nascimento” não tem nada a ver com uma má relativização de pontos de vista ontológicos. [Dieser Nachweis der Herkunft der ontologischen Grundbegriffe, als untersuchende Ausstellung ihres »Geburtsbriefes« für sie, hat nichts zu tun mit einer schlechten Relativierung ontologischer Standpunkte.] (Grifos meus.)
(Martin Heidegger, Sein und Zeit. 18ª edição. Tübingen: Max Niemeyer Verlag, 2001, § 6, p. 22)

Na verdade, no segundo dia após a publicação de meu segundo artigo (quinta-feira, 10 de junho), o colunista transcreveu esse trecho de seu livro no espaço de comentários de seu blog. Ao me deparar com isso, pensei, num primeiro momento, que Antonio Cicero tivesse cometido um erro de transcrição de seu próprio texto. Com base nesse benefício da dúvida em prol de meu oponente, ou seja, contando com a possibilidade de ele apenas ter mencionado de forma adequada a ressalva de Heidegger, afirmei em meu blog:

Essa reflexão heideggeriana pode certamente ser questionada e até mesmo refutada. Eu não li O Mundo desde o Fim, de Antonio Cicero. Se nesse livro ele fez a crítica dessa problematização, estou desde já interessado e faço meus protestos por ele não ter pelo menos dito, em seus dois artigos, que cumpriu esse percurso filosófico, ainda por cima com todo o espaço que ele tem – mais de 45% maior que o meu (4.360 caracteres contra 3.000). Mas o que ele apresentou hoje em seu próprio blog em resposta à sua pergunta é apenas uma recusa, e não uma análise que possa ter a pretensão de refutação. Em outras palavras, ele não pode estabelecer a coisa por decreto, nem fazer a pregação “No Princípio era o Cogito”.
(Resposta ao comentário de Aetano de 10/06, em “Uma ameaça maior que o dogma”, neste blog)

No dia seguinte (sexta-feira, 11 de junho), uma leitora de meu blog informou que essa confusão também constava no ensaio “A sedução relativa”. Com isso, percebi que eu não notara essa passagem quando li o ensaio por tê-lo feito superficialmente e há algum tempo. Mas como não gosto de ganhar discussão “no grito” ou “na marra”, eu estava prestes a reconhecer que deveria ter notado, no ensaio de Antonio Cicero, sua menção, ainda que equivocada, à ressalva do pensador alemão. Mas a internauta apontou um fato muito curioso: apesar de essa observação do colunista no ensaio de 2006, ele não explicou nesse texto aquilo que estava em questão, que era justamente a dependência cartesiana da escolástica, e não a uma mera contraposição de Heidegger aos conceitos cartesianos, que tornaria válida qualquer pensamento divergente do cartesianismo.

Não contive minha curiosidade de descobrir como esse ponto foi tratado no livro O Mundo desde o Fim, de Antonio Cicero. Após localizar pela internet um sebo perto de meu trabalho que tinha um exemplar dessa obra, eu o comprei. Ao verificar os trechos em que esse livro trata de Heidegger, constatei que nessa obra o colunista também havia desconsiderado a interpretação de Heidegger de que o pensamento de Descartes depende dos escolásticos medievais.

Em outras palavras, explico esse imbróglio agora por partes, “cartesianamente”:

a) tanto em seu livro O Mundo desde o Fim, de 1995 (p. 101), como em seu ensaio “A sedução relativa”, da coletânea O Silêncio dos Intelectuais, de 2006 (p. 195), Antonio Cicero reconhece que Heidegger procede a uma genealogia das concepções cartesianas;

b) nesses dois textos, porém, assim como em seus dois artigos consecutivos em sua coluna na Folha (15 de maio e 22 de maio) e na resposta em seu blog ora em questão (12 de junho), o colunista não mencionou a conclusão dessa abordagem heideggeriana: as concepções cartesianas são derivadas da escolástica medieval, o que contraria toda a tradição que aponta o pensamento do filósofo francês como autônomo e fundamentado em si mesmo;

c) em Ser e Tempo (§6), Heidegger afirmou que essa sua análise “não tem nada a ver com uma ‘má relativização’ de pontos de vista ontológicos”; e

Além de ter mencionado equivocadamente essa ressalva de Heidegger do § 6 de Ser e Tempo, no seu livro de 1995, no seu ensaio de 2006 e em sua resposta ora em questão, Antonio Cicero

– também não disse em nenhum desses três textos que a ressalva de Heidegger se referiu especificamente à sua análise apontada acima no tópico 3), da proveniência das concepções cartesianas; e

– induziu em erro seus leitores, como também reforçou indevidamente sua tese de que a análise heideggeriana é uma mera relativização do cartesianismo, que ele também chama de “desqualificação”.

Antonio Cicero comparou em seu livro de 1995 os conceitos da escolástica, especialmente de Santo Agostinho, aos de Descartes. Mas não resolveu o ponto ressaltado pelo pensador alemão em Ser e Tempo e em outras obras, que é a dependência dos segundos em relação aos primeiros. E, digo mais uma vez, isso contraria toda a tradição que aponta o pensamento cartesiano fundamentado exclusivamente em si mesmo.

Prossigo com a resposta do colunista.

Quanto à atitude de Heidegger em relação a Descartes, em “A questão fundamental da filosofia”, não é verdade que, como Tuffani afirma, o “alvo” dele fosse apenas a tradição acadêmica dogmática e louvadora do cartesianismo. Heidegger diz, efetivamente, que a importância atribuída a Descartes é sinal de falta de pensamento e irresponsabilidade das universidades alemãs (…)

Antonio Cicero incorre em outra descontextualização, omitindo que, pouco antes desse trecho, nessa mesma obra citada por ele, Heidegger também lembrou a dependência cartesiana em relação à escolástica. Ou seja, mais uma vez o colunista deixou de lado do que se tratava. Vejamos o que na verdade disse o pensador alemão.

Descartes aparece como o modelo do pensador radical que, em última instância, põe tudo em jogo e, ao mesmo tempo, dá indicação para uma edificação totalmente nova de toda a ciência. Nele se incorpora a Idade Moderna e seu despertar (“libertação”), em contraste com as trevas da Idade Média.
Decerto observou-se ultimamente que este Descartes não é independente de todo de seus antecessores, justamente os escolásticos medievais. (…)
Visto assim em sua dúvida universal e com a “acentuação”, ao mesmo tempo do eu, este Descartes é o objeto mais querido e usado nas chamadas provas e trabalhos para aprovação nas universidades alemãs. Este costume existente há decênios é apenas um sinal, mas inequívoco, da falta de pensamento e responsabilidade que se espalhou por lá. Não se teria chegado a tal desmoralização dos estudantes e do sistema de aprovação, se os próprios docentes não a tivessem patrocinado e permitido.
(Martin Heidegger, Ser e Verdade: 1. A questão fundamental da filosofia; 2. Da essência da verdade. Tradução de Emmanuel Carneiro Leão; revisão da tradução de Renato Kirchner. Petrópolis: Vozes; Bragança Paulista: Editora Universitária São Francisco, 2007, pp. 52-53.).

Ou seja, visto da perspectiva acadêmica laudatória e acrítica em relação à sua origem e à sua dependência do pensamento medieval, “este Descartes é o objeto mais querido e usado nas chamadas provas e trabalhos para aprovação nas universidades alemãs”.

(…) e, logo depois, explica:

“COM O PROPÓSITO DE DETERMINAR A POSIÇÃO REAL DE DESCARTES NA HISTÓRIA DA FILOSOFIA OCIDENTAL, NO TOCANTE ÀS QUESTÕES FUNDAMENTAIS, e ao fazê-lo, realçar o predomínio decisivo da ideia matemática do método, AFIRMO O SEGUINTE:

“1. A RADICALIDADE DA DÚVIDA DE DESCARTES E O VIGOR DA NOVA FUNDAMENTAÇÃO DA FILOSFIA E DO SABER EM GERAL É UMA APARÊNCIA E, ASSIM, FONTE DE ILUSÕES FATAIS, HOJE MUITO DIFÍCEIS DE SEREM ELIMINADAS.

Curiosamente, a radicalidade da dúvida de Descartes é justamente um dos pressupostos fundamentais da proposta filosófica expressa em seu livro O Mundo desde o Fim, que o colunista chama de “cogito ultracartesiano”, como mostra o trecho a seguir.

O cogito ultracartesiano a que chegamos é, evidentemente, muio diferente do cogito cartesiano. Trata-se, ao contrário deste, que, como vimos, pretende ser um fundamento positivo para o conhecimento, de um cogito negativo. Não chegando a conceituar a apócrise, o pensamento cartesiano clássico não pode compreender nem que a busca da certeza absoluta é homóloga à busca da essência do eu nem que esta é idêntica à essência do agora e à essência do ser. Só a radicalização do pensamento cartesiano alcança essa essência necessária, universal, absoluta e pura que chamamos de negação negante, que constitui o fundamento negativo de todo o conhecimento.
(Antonio Cicero, O Mundo desde o Fim. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1995, § 9, p. 46.)

“2. ESSE PRETENSO NOVO PRINCÍPIO DA FILOSOFIA MODERNA, COM DESCARTES, NÃO APENAS NÃO CONSISTE, COMO É, SOBRETUDO, O INÍCIO DE MAIS UMA DECADÊNCIA DA FILOSOFIA. DESCARTES NÃO LEVA A FILOSOFIA DE VOLTA PARA SI MESMA, PARA SEU FUNDO E SEU CHÃO, MAS A DISTANCIA MAIS AINDA DO QUESTIONAMENTO DA QUESTÃO FUNDAMENTAL” (Ser e verdade. Trad. de Emmanuel Carneiro Leão. Petrópolis, Ed. Vozes, 1007.

O uso do termo “decadência” nesse trecho é conceitual. Nele Heidegger não apontou a filosofia de Descartes como um pensamento que corrompe, distorce ou degrada a filosofia, mas que fundamenta e promove a partir dele a autonomização crescente das ciências em relação a ela, principalmente guiada pelas necessidades da tecnologia. Sendo o que se seguiu a todo o ápice de vigor filosófico em Descartes, esse declínio é um aspecto dessa “decadência”. E essa autonomização não pode ser vista de modo maniqueísta ou satanizador como afimou o próprio Heidegger:

Seria insensato investir às cegas contra o mundo técnico. Seria ter vistas curtas querer condenar o mundo técnico como uma obra do diabo. Estamos dependentes dos objectos técnicos que até nos desafiam a um sempre crescente aperfeiçoamento. Contudo, sem nos darmos conta, estamos de tal modo apegados aos objectos técnicos que nos tornamos seus escravos.
(Martin Heidegger, Serenidade. Tradução de Maria Madalena Andrade e Olga Santos. Lisboa: Instituto Piaget, s./d., p 23.)

Ainda com relação a “decadência”, e a fim de mostrar, sem nenhuma pretensão de comprovação de tese, vale lembrar duas interpretações em língua portuguesa de outros estudiosos sobre esse conceito.

Apesar do sentido de deterioração, Heidegger insiste que Verfallen não é um termo de desaprovação moral, nada tendo em comum com a acepção cristã de queda da graça. (…) Heidegger dá três exemplos daquilo em que Dasein caiu e, implicitamente, de onde Dasein se afastou (ST, 175):
1. Verfallen significa: “Dasein está antes de tudo e na maioria das vezes junto ao [bei] ‘mundo’ de sua ocupaçãp” (cf. ST, 250).
2. “Esta absorção em… [Aufgehen bei…] geralmente possui o caráter de estar perdido na publicidade do impessoal”.
3. “Decair no ‘mundo’ significa ser absorvido no ser-um-com-o-outro, à medida que isto é guiado pelo falatório, pela curiosidade e pela ambiguidade”.
(Michael Inwood, Dicionário Heidegger. Tradução de Luísa Buarque de Holanda; revisão técnica de Márcia Sá Cavalcante Schuback. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2002, p. 31.)

A tradutora brasileira de Ser e Tempo, Márcia Sá Cavalcante Schuback, em suas”Notas Explicativas” à segunda edição, incluiu a seguinte:

(N60) DECADÊNCIA = VERFALLEN
O termo decadência corresponde à expressão alemã Verfallen, inclusive nas conotações morais e desabonadoras que Ser e tempo exclui. Trata-se de um termo que remete à estrutura ontológico-existencial que é a presença e não a uma qualidade ou modalidade. Em português, o étimoda cadência, do tatino cadere, exprime literalmente o que Heidegger expressamente insiste de que decadência significa movimentação de ser.
(cf. Notas Explicativas in Martin Heidegger, Ser e Tempo. 2ª edição. Tradução de Márcia Sá Cavalcante Schuback; posfácio de Emmanuel Carneiro Leão. Petrópolis: Vozes; Bragança Paulista: Editora Universitária São Francisco, 2007, p. 576.)

Voltemos à resposta do colunista.

Segundo Tuffani, “Verfall[en]” (“decadência”) não exprime, para Heidegger, qualquer avaliação negativa. Novamente, ele confunde as coisas. Segundo Heidegger, o termo “Verfall” não exprime qualquer avaliação negativa quando aplicado ao “Dasein”, isto é, ao ser humano situado no mundo. Observo, en passant, que, na verdade, é altamente questionável que palavras como “decadência”, e “inautenticidade” possam ser usadas sem carga valorativa. Como diz Adorno em Die Jargon der Eigentlichkeit (Frankfurt: Suhrkamp, 1964, p.81): “As expressões terminologicamente escolhidas não se esgotam nos seus usos que são escolhidos com liberdade subjetiva, mas – e Heidgger, o filósofo da linguagem, devia ser o primeiro a concordar – conservam como seu conteúdo objetivo as normas das quais Heidegger as separa”. (…)

Não conheço a obra de Adorno citada, mas, a julgar apenas em função de seu trecho acima transcrito, nem mesmo os advogados poderiam usar o termo “decadência” em seu significado jurídico, que é a “perda do direito de ação, por não havê-lo exercido o ofendido durante o prazo legal” (definição atribuída a Magalhães Noronha no verbete “Decadência (direito civil)”, na Wikipédia). Independentemente disso, não tenho dúvida de que uma expressão estabelecida para uma terminologia especializada não se esgota nesse uso. E também não me parece que Heidegger tenha se apropriado do uso desse e de outros termos.

(…) De todo modo, é verdade que separá-las das suas cargas valorativas é, de fato, o que Heidegger diz PRETENDER, no livro Ser e tempo, de 1927.

Depois disso, porém, e fora desse contexto, Heidegger continuou a empregar a palavra “Verfall” – “decadência” – pejorativamente, como todo o mundo. O texto sobre Descartes como decadente é de 1933-34. Pela mesma época, em Introdução à metafísica, de 1935, por exemplo, Heidegger declara que “a decadência espiritual da terra já foi tão longe que os povos estão ameaçados de perderem a última força espiritual que lhes permite ver e avaliar enquanto tal a decadência”.

É claro que Heidegger também usava termos homônimos de seus conceitos em suas acepções coloquiais, e o caso pontado pelo colunista é um deles. Mas ele não abandonou o uso conceitual após escrever Ser e Tempo. Vejamos, por exemplo, como ele se referiu a esse conceito em Sobre o Humanismo, em 1947:

O termo [decadência] não significa uma queda do homem, entendida sob uma perspectiva filosófico-moral e ao mesmo tempo secularizada, pois designa uma relação essencial do homem com o ser, no interior da referência deste à essência do homem. [Das wort meint nicht einen » moralphilosophisch « verstandenen und zugleich säkularisierten Sündfall des Menschen, sondern nennt ein wesenhaftes Verhältnis des Menschen zum Sein innerhalb des Bezugs des Seins zum Menschwesen.]
(Über den Humanismus, p. 24.)

Se Tuffani não percebe a carga pejorativa do vocábulo “decadência” nesse texto, então receio que, se não no que diz respeito à terra como um todo, ao menos no que diz respeito a ele essas palavras de Heidegger foram proféticas.

Em suma, nenhuma das acusações de Tuffani contra mim tem procedência.

É desnecessário dizer qualquer coisa sobre essas palavras finais. A elas, para finalizar, acrescento apenas as do próprio Heidegger em mais uma passagem de Sobre o Humanismo em que ele se refere ao seu próprio pensamento:

Está longe dele a pretensão de querer começar tudo do início e declarar falsa toda a filosofia anterior. [Ihm liegt die Anmaβung fern, von vorne anfangen zu wollen un alle vorausgegangene Philosophie für falsch zu erklären.]
(Über den Humanismus, p. 29)

A banalização e o dogma

Retomo a objeção de Antonio Cicero que deixei para comentar em separado e transcrevo a seguir.

Em vez disso, Tuffani escreveu um artigo intitulado “Uma ameaça maior que o dogma”. E qual seria a ameaça maior que o dogma? Segundo ele, trata-se da banalização da filosofia. Já isso está errado, é claro. O dogma é pior do que a banalização, pois, além de ser banalizado, é também esclerosado, intolerante e surdo a críticas.

O tema da banalização não foi tratado explicitamente em meu primeiro artigo, mas está implícito nele. No que diz respeito especificamente a essa objeção de Antonio Cicero — a de que o dogma é pior que a banalização —, eu já a esperava, e o convido a refletir um pouco mais sobre o assunto. Entendido como pressuposto básico, como axioma, como preceito fundamental, um dogma pode fazer — e ressalto que eu não disse “faz” — parte de um pensamento filosófico em seu nível mais essencial, geralmente sem prejuízo da clareza de ser um dogma por parte daquele que pensa.

Com a banalização é diferente. Ela não é proposital no pensamento filosófico, a não ser nos casos de má-fé, e, quando acontece, ela se dá principalmente na interpretação das obras de outros pensadores. Ela pode não só distorcer conclusões, mas também ocultar interrogações e até dogmas.

A banalização é pior do que o dogma, pois pior que assumir um dogma é não ser capaz de constatá-lo como tal. Tomando como exemplo infelizmente ainda atual, esse é o caso de um pressuposto não tematizado do conceito de civilização presente em grande parte do ideário marxista: o do rumo inexorável para o comunismo, com a abolição definitiva da divisão social do trabalho e o surgimento do “homem total”, que escolhe onde e quando quer ser trabalhador, poeta, pintor, filósofo etc. É o que aponta a contundente análise “Super-homem e homem total”, de Gérard Lebrun, publicada em 1978 e traduzida recentemente para o português, da qual transcrevo o trecho a seguir.

(…) contentar-se com invocar a “passagem inelutável” [do capitalismo para o socialismo] é o mesmo que dar ocasião para que se suspeite que a continuidade de uma forma a outra poderia ser mais profunda do que faz crer o relato fanfarrão das proezas do “homem total” de amanhã.
Como encontrar os a priori de civilização que o socialismo arriscaria a substituir? A questão não será posta, o marxismo a evita e se satisfaz com essa imensa preterição. (…) notem que se trata sempre de abolir as limitações, de derrubar as barreiras, de fazer os bloqueios ir pelos ares, para devolver o livre curso ao crescimento ou ao destino da humanidade que as relações de produção, que estaríamos tentados a chamar de “representativas”, ocultavam e entravavam.
(Gérard Lébrun, “Super-homem e homem total”. Tradução de Maria Lúcia M. Cacciola. in: A Filosofia e sua História. São Paulo: Cosac Naify, 2006, pp. 176-177.)

Não adianta a disposição para questionar se não se enxerga o que há para ser questionado. Se a dogmatização faz com que um tema não seja questionado, a banalização pode inviabilizar até mesmo que algo seja tematizado.

O digno-de-ser-questionado é o que se põe, antes de tudo, para o pensar como aquilo que ele deve pensar, mas de forma alguma o que é tragado pela voracidade de uma vazia compulsão de duvidar. [Die Frag-würdige ist allerst dem Denken als sein zu Denkendes anheimgegeben, keineswegs aber in den Verzehr einer leeren Zweifelsucht verstoβen.]
(Über den Humanismus, p. 14)

No que diz respeito à interpretação de Heidegger por Antonio Cicero, não tenho a menor pretensão de que os equívocos nela apontados por mim ponham em xeque a proposta filosófica exposta em O Mundo desde o Fim. Mas sua descaracterização da interrogação heideggeriana certamente impossibilitará sua dúvida ultracartesiana se exercer plenamente em face dos desafios relacionados ao relativismo.

Notas

* Maurice Merleau-Ponty, Le Visible et l’Invisible. Paris: Galimmard, 2002, p. 247.

** Aristotle, Metaphysics. Texto bilíngue (grego-inglês). Tradução de Hugh Tredennik. Cambridge: Harvard University Press, 1933 (Loeb Classical Library, Aristotle, v. XVII), p. 14.

*** Anatole Bailly, Le Grand Bailly: Dictionnaire Grec-Français. 26ª edição. Paris: Hachette, 2000, p. 1689.

<<< Página Principal

Written by Mauricio Tuffani

quinta-feira, 17/06/2010 at 7:30

Publicado em Filosofia, Política

Uma ameaça maior que o dogma

with 31 comments

O artigo abaixo foi publicado na Folha de S. Paulo hoje (8 de junho), à pág. A3 (Tendências/Debates).

Os temas filosóficos são muitas vezes identificados pelo senso comum por seus aspectos extravagantes. Estes, longe de transmitir as ideias originais, na verdade ofuscam o que há de essencial nelas.

Mas há também entre os próprios pensadores uma espécie de senso comum filosófico. Ele está no apelo exagerado aos “ismos” – o humanismo, o niilismo e outros –, e em chavões manipuláveis ao gosto de cada intérprete.

Devido à vastidão da filosofia, nenhum pensador é imune a essa banalização. Não há, portanto, desrespeito ao apontar isso nos dois textos mais recentes do colunista Antonio Cicero na Ilustrada, “Irracionalismo” (15/5) e “Heidegger, Descartes e a razão” (29/5).

O segundo artigo dele é uma réplica a “O tabu em torno da razão” (Tendências/Debates, 26/5), no qual contestei o primeiro por ele ter atribuído a Martin Heidegger um “feroz anticartesianismo” e também a “desqualificação” da tradição filosófica e da razão.

Peço desculpas por um erro em meu artigo anterior. Apontei como fonte o § 24 em vez do § 6 do livro Ser e Tempo, de Heidegger. E poupo os leitores do revide às suposições feitas pelo colunista sobre mim por não ter ele notado que esse foi um erro de referência.

Meu foco não é defender o pensador alemão. Como já ressaltei e exemplifiquei, existem críticas pertinentes a ele. Mas esse não é o caso dos argumentos do colunista, já previstos e contestados desde 1927 em Ser e Tempo.

Heidegger questionou as noções básicas do pensamento de Descartes, tradicionalmente concebidas como absolutas, e concluiu que elas são filhas da escolástica medieval. Essa investigação da “certidão de nascimento” do cartesianismo não é imune a críticas. Mas Antonio Cicero simplesmente chamou-a de “relativização”, sem notar que, há 73 anos, Ser e Tempo já previra e contestara essa rotulação (§ 6).

Para reforçar sua ideia do “ataque” a Descartes, o colunista alegou que em A Questão Fundamental da Filosofia Heidegger se queixou da importância do pensador francês nas universidades ao apontá-lo como o início de uma ampla decadência da filosofia. Mas o alvo da queixa do alemão foi outro: a tradição acadêmica dogmática e louvadora do cartesianismo.

Além disso, o conceito Verfallen (decadência em alemão) “não exprime qualquer avaliação negativa”, esclarece Ser e Tempo (§ 38). Trata-se do “empenho na convivência, na medida em que esta é conduzida pela falação, curiosidade e ambiguidade”.

Esse ponto nos conduz ao que importa nesta discussão, que pode soar “bizantina” para o senso comum: o pior ao se banalizar um pensamento não é distorcer suas conclusões, mas ocultar suas interrogações.

Antonio Cicero encerrou seu artigo dizendo defender a razão e a liberdade de pensamento contra o dogma. Mas a banalização é capaz de mascarar até mesmo o dogma. Ela está presente em cada um de nós e pode fazer da própria liberdade do pensamento um clichê vazio e inócuo.

MAURÍCIO TUFFANI é jornalista, editor do blog Laudas Críticas e assessor de comunicação e imprensa da Unesp.

<<< Página Principal

Written by Mauricio Tuffani

terça-feira, 08/06/2010 at 7:00

Publicado em Filosofia