Laudas Críticas

Enquanto a floresta queima, os números dançam

(Publicado na revista Nova Ciência, São Paulo, ano II, nº 7, 1990, agosto/setembro/outubro, págs. 32-36)

MAURÍCIO TUFFANI

A última estimativa de desmatamento da Amazônia sepultou o maior empreendimento de contra-informação sobre a devastação florestal no Brasil, desencadeado no dia 6 de abril do ano passado [1989] pelo Presidente José Sarney. Durante a cerimônia de apresentação do programa Nossa Natureza, ele criticou estimativas de especialistas estrangeiros, que apontavam uma devastação de até 12% na região amazônica.1

Com base em um estudo do Instituto de Pesquisas Espaciais (Inpe), Sarney afirmou que desde o Descobrimento do Brasil só haviam sido derrubados 5% da floresta. Esse índice equivale a 251,4 mil quilômetros quadrados, uma área pouco maior que a da Inglaterra. Catorze meses depois, o próprio Inpe foi forçado a corrigir para 358,7 mil quilômetros quadrados esse dado, evitando a todo custo sua apresentação na forma de percentual.

Antes de ser levado aos meios de comunicação no início de abril de 1989, o trabalho de contra-informação começou efetivamente no final do mês anterior, na sede do Inpe, em São José dos Campos (SP). Logo após três semanas de trabalho intensivo de cerca de 30 pesquisadores do instituto, que analisaram dezenas de imagens geradas pelo satélite norte-americano Landsat-5, o diretor de Sensoriamento Remoto, Roberto Pereira da Cunha, e mais quatro técnicos elaboraram a portas fechadas o relatório da avaliação, no qual constatava o dado anunciado por Sarney.

A fragilidade técnica do estudo do Inpe veio à tona logo no dia posterior ao pronunciamento de Sarney, quando cientistas e ambientalistas criticaram a forma como foi obtido o índice de 5%. Esse percentual corresponde à divisão entre os 251,4 mil quilômetros quadrados de florestas desmatadas e os cerca de 4,9 milhões de quilômetros quadrados da Amazônia Legal, que compreende também a outros tipos de vegetação, como os cerrados, que não foram incluídos entre as áreas estudadas.

O trabalho não permitiu calcular a área total da floresta. Roberto Cunha afirmou na ocasião que esse procedimento de cálculo havia sido adotado em 1980, quando foi realizada outra avaliação do desmatamento da região. Na verdade, o trabalho anterior considerou também a devastação dos cerrados.2 Os técnicos que participaram da análise das imagens quiseram explicações da diretoria do Inpe sobre a elaboração do relatório. Mas receberam de Cunha apenas a ordem de permanecerem de boca fechada.

Uma semana após a fala de Sarney, o suplemento científico do jornal Folha de S. Paulo mostrou que os dados do Inpe eram incompatíveis com estudos anteriores do extinto Instituto Brasileiro de Desenvolvimento Florestal (IBDF), obtido também através de imagens do Landsat-5. Os responsáveis pelo relatório enviado a Sarney prepararam novamente, a portas fechadas, uma segunda versão do documento, que ficou pronta no início do mês seguinte. Começava um longo período de esclarecimentos em doses homeopáticas.

A segunda versão do relatório chegou ao conhecimento público através do jornal paulista no dia 8 de maio do ano passado [1989]. O novo relatório trouxe a informação de que, com a inclusão de desmatamentos antigos, isto é, anteriores à política de incentivos fiscais para projetos agropecuários na Amazônia, a área desmatada na região até 1988 era de 343,9 mil quilômetros quadrados. (A diferença de 92,5 mil quilômetros quadrados equivale ao dobro da extensão do Estado do Rio de Janeiro.) Além disso, os gráficos da evolução dos desmatamentos do segundo relatório não apresentavam pontos ligados por retas, como no documento anterior, cujos quadros induziam o leitor a imaginar que a devastação da região amazônica tinha um aumento linear e não exponencial, como afirmava Dennis Mahar, consultor do Banco Mundial, em seu estudo sobre a devastação amazônica, que mencionava o total de 12% para a área desmatada da Amazônia Legal.

O agrônomo Vitor Celso de Carvalho, chefe do Departamento de Pesquisa e Aplicação em Sensoriamento Remoto do Inpe, distribuiu no instituto um comunicado afirmando que a avaliação teve sua confiabilidade comprometida pelo curto prazo de execução decorrente da solicitação de Sarney, de se fazer o trabalho em menos de um mês. “A determinação do governo mobilizou 20 técnicos que estavam sob a minha direção, interferindo no andamento de seus trabalhos de pesquisa para comprometê-los com essa operação absurda”, afirmou Carvalho à Folha de S. Paulo. Ele disse também que Cunha e os outros responsáveis pelos relatórios cometeram “erros primários de combinação de dados”. O diretor-geral Márcio Barbosa afirmou que o documento era um trabalho de divulgação do qual não se poderia exigir rigor científico e que o Inpe viria a resolver “em breve” todas as dúvidas sobre a avaliação através de um relatório técnico em elaboração.

Através de nota oficial, o Inpe afirmou que os “desmatamentos antigos” não foram computados na avaliação porque “não faz sentido considerar as áreas de desmatamento antigo como elemento de preocupação para avaliação de impactos de políticas governamentais de ocupação na Amazônia” e que a avaliação de 1980 seguira o mesmo procedimento. Mas cinco anos antes, o ecólogo Philip Fearnside, do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa), de Manaus, já afirmara que essa exclusão havia sido uma das principais deficiências do trabalho de 1980.3

O caso chegou ainda em maio do ano passado [1989] à Comissão Parlamentar de Inquérito do Senado instalada para apurar os resultados das políticas de ocupação da Amazônia. Em seu depoimento, tomado sob juramento, Roberto Cunha afirmou que o trabalho do Inpe se baseara na análise de 101 imagens de satélite, das quais 88 correspondiam ao ano de 1988. Três meses depois, o diretor do Inpe deu a mesma informação em um simpósio sobre a Floresta Amazônica promovido pela Universidade de São Paulo (USP).

O relatório técnico prometido por Márcio Barbosa ― que só chegou ao conhecimento público através da imprensa ― acabou por contradizer as informações de Roberto Cunha sobre o total de imagens utilizadas. Concluído em dezembro último [1989], o documento mostra que apenas 73 ― e não 88 ― das 101 imagens Landsat analisadas eram de 1988.4 A diferença corresponde a uma área de cerca de 500 mil quilômetros quadrados, que abrange regiões de grande incidência de desmatamentos nos últimos anos, como o norte de Mato Grosso.

Com a reforma administrativa do governo Collor, foi extinta a diretoria ocupada por Roberto Cunha. A partir de abril [1990], a área passou a ser subordinada à Diretoria de Observação da Terra, pela qual responde Luiz Gylvan Meira Filho, um meteorologista de renome internacional. Meira coordenou a conclusão da avaliação do desmatamento amazônico até 1989 e a revisão do trabalho feito sob a responsabilidade de Cunha. A revisão acabou por atribuir para o desmatamento até 1988 cerca de 358,7 mil quilômetros quadrados, um número 42,6% maior que os 251,4 mil quilômetros quadrados divulgados por Sarney. A nova avaliação estabeleceu em 394,7 mil quilômetros quadrados a área desmatada até o final do ano passado [1989] na Amazônia. Apesar de evitar comentários sobre a elaboração do trabalho do ano passado, Meira
assumiu uma atitude completamente deferente da que havia sido adotada por Roberto Cunha, passando a esclarecer as dúvidas da imprensa e de pesquisadores.

Apesar da nova avaliação, é preciso ainda quantificar a extensão das florestas e de outros tipos de vegetação da Amazônia. Só para se ter uma idéia da importância desses dados, os 394,7 mil quilômetros quadrados de desmatamentos correspondem a 12,1% dos 3,258 milhões de quilômetros quadrados atribuídos à extensão total da floresta em 1973 por João Murça Pires, do Museu Paraense Emílio Goeldi. Esse percentual cresce para 15,2% se for considerada como área total de floresta os 2,6 milhões de quilômetros quadrados obtidos no ano seguinte por Clara Pandolfo, da Superintendência para o Desenvolvimento da Amazônia. A que percentual chegaremos se for computada também a devastação nos cerrados da região?

Além disso, está na fora de ampliar o debate sobre as limitações da avaliação de desmatamentos através do uso de imagens de satélite sem o amparo da verificação de campo. Essas limitações começam na dificuldade de identificar áreas afetadas pela extração seletiva de madeiras nobres. Essa “perturbação sem desmatamento” já foi comentada por Fearnside e tem sido constantemente mencionada pelo geógrafo Aziz Ab’Sáber, do instituto de Estudos Avançados da USP. Esse debate deve abordar também as limitações da aplicação das técnicas de sensoriamento remoto na formulação de projetos de ocupação de áreas naturais. Aliás, esse problema já foi posto em evidência por alguns pesquisadores, como o próprio Ab’Sáber: “Infelizmente, o uso abusivo dessas técnicas, sem a necessária adequação para condições regionais muito diversas, ocasionou uma certa desmoralização científica de sua aplicação.”5

Referências

  1. MAHAR, D.J. ― Goverment Policies and Deforestation in Brazil’s Amazon Region, Washington DC. 1989. The World Bank.
  2. TARDIN, A.T. et al. ― Subprojeto Desmatamento ― IBDF/CNPq-Inpe. São José dos Campos. 1980. Instituto de Pesquisas Espaciais.
  3. FEARNSIDE, P.M ― A Floresta Vai Acabar? in Ciência Hoje, nº. 10, janeiro de 1984. Rio de Janeiro.
  4. TARDIN, A.T. e CUNHA, R.P. ― Avaliação da alteração da cobertura vegetal da Amazônia Legal usando sensoriamento remoto orbital. São José dos Campos. 1989. Instituto de Pesquisas Espaciais.
  5. AB’SÁBER, A. — Zoneamento Ecológico e Econômico da Amazônia: questões de escala e método. in Estudos Avançados, nº. 5. 1989 São Paulo. Instituto de Estudos Avançados da USP.

Written by Mauricio Tuffani

terça-feira, 22/07/2008 às 12:29